domingo, 8 de novembro de 2009

Bastardos

Finalmente ontem consegui abrir um espaço de quatro horas na minha agenda repleta de compromissos sociais e profissionais e fui ver, com um indesculpável atraso de um mês, o mais recente filme de Quentin Tarantino, "Inglorious Basterds". Antes de falar no filme propriamente dito, quero abordar algumas questões sobre a experiência sociológica marcante que foi esta aparentemente simples e corriqueira ida ao cinema.

Rio, 39 graus, no temerário horário de verão de 02:00 PM, estava eu a caminho do Cinemark, no Botafogo Praia Shopping. Acordei especialmente bem humorado e, por conseguinte, senti-me munido de extrema tolerância e de uma sensação de paz que me permitiria lidar razoavelmente com as indiossincrasias populares. Afinal, Tarantino sempre vale um sacrifício extra. Já sabia que almoçar em meio a uma horda de crianças famintas e maleducadas e seus pais desesperados e não menos maleducados seria inevitável. Não enfrentar uma fila homérica para comprar o ingresso também estava fora de questão. Preparei-me adequadamente para todos estes percalços. Cheguei vinte munutos antes do que poderia porque sabia que a fila do elevador teria aquelas 256 pessoas regulares, e eu teria que subir os longos e tediosos oito andares de escada rolante. Estava correto, as usual. Meio zonzo de tanto subir em círculos, cheguei ao cume do shopping. Fui para a fila da bilheteria. O corredor/curral que o Cinemark faz para tentar mostrar a seus selvagens frequentadores que aquilo deverá ser uma fila única é um labirinto de mais ou menos uns 80 metros. Já tonto pelo caracol de escadas rolantes, tentar seguir aquele ziguezague de fitas e pilares e mais inglório que os bastardos do filme que eu iria assistir. Claro que, como todo mundo, ignorei o curralzinho e passei por debaixo das fitas, o que para mim não foi tão simples como para as oito crianças que passaram à minha frente antes que eu chegasse ao fim da fila. Da próxima vez levo uma tesoura de cortar grama e mando aquelas fitas para o caralho. Ingresso na mão, tentei almoçar. Havia comida: lugares disponíveis, não. Tive que esperar um pouco. Fui para um canto, onde calculei que a possibilidade de ser abalroado por uma criança equilibrando uma bandeja cheia de yakisoba e Guaravita seria pequena. Fui bem sucedido, minha camisa verde-limão saiu de lá incólume. Esperei pouco, uns dez minutos, mas pareceu no mínimo meia-hora. Meu protegido recanto lamentavelmente não era contemplado pelo delicado sistema de condicionamento de ar local. Até vagar uma mesa, suei tanto que quase tive que recorrer a soro caseiro com gosto de lágrima para não desidratar. Três litros se foram, e consegui uma mesa. Fui até a fila do chinês (mais uma), servi-me de arroz colorido e tempura de peixe. O arroz colorido estava uma merda, não sei como conseguiram. Felizmente o tempura estava bom, e me deu a sustança necessária para encarar as três horas de projeção do filme. Dirigi-me então ao cinema, não com o humor intacto, mas ainda calmo. Estranhamente, não havia qualquer fila para entrar. Faltavam apenas quinze minutos para o início da minha sessão. Entreguei meu ingresso à bilheteira. Fui informado que o cinema ainda não estava aberto. OK. Olhei à minha volta, vi uma espécie de lounge com algumas poltronas, e, contrariando todas as espectativas, havia algumas vagas. Tornei a olhar em volta. Achei que era alguma pegadinha, tipo câmera escondida. Desconfiado, fui até o lounge, e me sentei em uma delas, de costas para a entrada do cinema. Resolvi relaxar jogando um pokerzinho no meu blackberry. Em dez minutos perdi uns três mil dinheiros. Virei de costas para ver se já haviam liberado a entrada. Tinha uma fila de umas quarenta pessoas. Não sei de onde elas saíram. Passaram por trás de mim totalmente despercebidas. Ou eu estava muito absorto em meu joguinho ou tratava-se de alguma promoção especial do Cinemark para ninjas cinéfilos. Fui correndo para a fila, antes que ela triplicasse de tamanho com soldados GI Joe descendo em cordas pelo teto, ou com mortos-vivos surgindo pelo piso do shopping. Já na sala, devidamente aboletado no assento G8, vivi aqueles momentos de tensão que antecedem o início da projeção. Com esta história de lugares marcados (odeio isso), a gente nunca sabe se vai conseguir sentar sem ninguém ao lado. Mesmo comprando a entrada um pentelhésimo de segundo antes do ínicio do filme, sempre corremos o risco de aparecer algum desinfeliz carente que quer passar as próximas duas horas roçando o braço no escurinho com um completo desconhecido. Comecei a sentir calor, mas atribuí a esta sensação pré-projeção. Tocava uma seleção musical chatíssima, uma homenagem a Noel Rosa, nada adequada a fãs de Tarantino, acostumados às geniais trilhas sonoras do diretor. Com atraso de uns três minutos, as luzes se apagaram. Ninguém sentou ao meu lado. Sorri interiormente. Deu-se início então a uma interminável sequência de trailers. Nunca vi tantos trailers antes da exibição de um filme. Durou uma eternidade. Lembrou-me a época em que os curtas metragens eram obrigatórios e nos impingiam cada lixo que custávamos a acreditar que alguém são pudesse perder tempo fazendo um coisa daquelas. E, detalhe, o calor aumentava. Comecei a perceber que o ar não estava tão condicionado como deveria. E isso não era bom, muito em função de que estávamos numa sala fechada, no último andar de um edifício em frente à praia e que fazia quarenta graus Celsius lá fora. Previ que as próximas três horas seriam longas. Meu humor começou a piorar. De repente, a bomba. Surge na tela, imponente, o trailer de "Lula, o filho do Brasil". Passar o trailer desta "produção" antes de um filme de Tarantino é a mesma coisa que programarem um trailer do próximo lançamento pornô das "Brasileirinhas" antes de um filme sobre a vida da Madre Tereza de Calcutá. É de extremo mau gosto, e muito ofensivo aos espectadores. Sentindo-me o Little Alex em Laranja Mecânica quando, em seu tratamento, foi obrigado a ver cenas atrozes com grampos que impediam que ele fechasse seus olhos, fui submetido a uma inimaginável sessão de tortura que me permitiu perceber a lavagem cerebral que esta peça de propaganda fará nas pobres mentes que a ela serão expostas, não coincidentemente, em janeiro do ano que vem, bem no início da campanha para as eleições presidenciais. Amigos, tenha medo deste filme. Entre a vontade de sair correndo, a ânsia de vômito, e a insuportável sensação de vergonha alheia de ver mãe e filha Pires pagarem o inacreditável mico de participarem de tal palhaçada, fui acometido de uma epifania. Agora entendo Dilma e seus pares, em seus arroubos guerrilheiros da década de 60 e 70. Também eu, naquele momento, cogitei pegar em armas. Tive medo que aquela experiência ultrajante estragasse meu filme, meu sábado, meu fim de semana, meu fim de ano, meu 2010, meus próximos quatro anos. Mas como a propaganda molusca mesmo diz, sou brasileiro, não desisto nunca. Vou me irritar muito ainda com este maldito filme, não vou ficar me torturando desde já. Decidi abstrair. Fui ajudado pelo melhor teaser de filme que vi nos últimos tempos. Um hilário filmete com mãe e filha no cinema, assistindo ao badalado "Lua Nova", e a mãe, excitadíssima, tecendo loas ao abdomen sarado de um dos lobisomens do filme. Genial. Aí, finalmente, botaram Tarantino pra tocar.

O filme? É um Tarantino, na veia. Um ótimo Tarantino. Não é um Pulp Fiction. Mas é muito melhor que Jackie Brown, e no mesmo nível de Kill Bill. Está tudo ali. Os diálogos afiados, a trilha sonora marcante, as cenas antológicas, os personagens bizarros, as situações inusitadas, as sequências ultraviolentas. Tarantino, definitivamente, é meu cineasta predileto. Essa mistura de cultura pop com os gêneros clássicos do cinema é a minha cara. Por isso, sou suspeitíssimo para comentar o trabalho deste cara. Mas faço mesmo asssim. Se não fôsse o calor insuportável que estava fazendo, as três horas de projeção passariam deliciosamente. A sucessão de cenas, conexas mas quase independentes, fluem fácil, e o que poderia ficar prolixo na mão de outro, aqui só diverte. Brad Pitt é o melhor ator bonito da história do cinema. Marlon Brando é o caralho. Esse cara faz comédia, ação, drama, romance, muda de cara e de forma e é sempre impecável. Seu Lt. Alan Raine é engraçadíssimo; o cinema vem abaixo na cena em que ele, com seu forte sotaque caipira americano, se mete a falar italiano. Mas um cara, para mim um completo desconhecido, pega o filme, põe debaixo do braço, e diz este é meu. O camarada da foto lá em cima, o ator austríaco Christoph Waltz, está monstruoso na pele do Coronel da SS Hans Landa, da primeira a última cena. Se ele não ganhar o Oscar de Melhor Coadjuvante (coadjuvante que ele não é, já que aparece mais do que qualquer outro no filme, talvez não em tempo, mas certamente em atuação) rasgo a minha carteirinha da Academia. Ele consegue ser genial em quatro idomas: alemão, francês, inglês e italiano. Seu personagem é um dos melhores já construídos na fábrica Tarantino. Inteligente, charmoso, sarcástico, maquiavélico, implacável. É um vilão, dos bons, mas é impossível ter raiva dele. É o tipo de cara que você não teria como amigo, muito menos quer como inimigo, mas o poria tranquilamente na folha de pagamento. A francesa Mélanie Laurent, gatíssima, tambem manda muito com sua Shosanna Dreyfus, judia refugiada que tem sua família assassinada na primeira (e sensacional) cena do filme.
Bem, depois deste longo post onde escrevi o nome de Tarantino nove vezes (dez com essa, possivelmente um recorde, talvez nem a mãe nem o empresário dele tenham realizado tamanha babação de ovo), vou me despedindo, para alívio dos poucos que me acompanharam até aqui. Nos vemos na próxima.

2 comentários:

  1. Cara, esse teu post foi o melhor que encontrei na internet nos últimos dois meses. Tô dobrando de rir.

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  2. Que nada... você que é amigão! Abraço!

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